Em 1917, Francis Poulenc (1899-1963) perdera seu pai - um homem profundamente religioso - e, com ele, perdera igualmente os laços com sua fé. O exemplo de sua família materna o conduzira a uma suave indiferença e já em 1920 não se preocupava com quaisquer problemas espirituais. Até que a mão de Deus mudou o rumo de sua vida. Em 1936, quando realizava uma turnê com seu amigo, o tenor Pierre Bernac, Poulenc visitou Rocamadour, lugar sobre o qual seu pai se referia freqüentemente na sua infância. Alguns dias antes, ele havia recebido a notícia da morte trágica de seu grande amigo Pierre Ferrand. Em meio a meditações sobre o relacionamento humano, eis que a vida espiritual volta a seduzi-lo. Rocamadour - lugar de paz extraordinária - possuía uma capela construída na rocha, que abrigava uma imagem miraculosa da Virgem Maria que, segundo a tradição, teria sido esculpida dentro de uma madeira por Santo Amadour, o Zaqueu do Evangelho. Assim, a visita ao Santuário, como o próprio Poulenc descreveu, adquiriu singular importância em sua vida. Entender sua obra religiosa sem conhecer o significado místico dessa peregrinação, torna-se inútil. E tampouco parece ter sido por acaso que o Santuário escolhido por Deus para tocar de novo seu coração fosse Rocamadour. Sua vida se parecia, no íntimo, com a do próprio Zaqueu das Escrituras. Este, diminuído em face de sua pequena estatura e Poulenc, com a alma diminuída diante da dor pela perda do amigo. Ambos buscando um encontro com o Divino, tentando encontrar, quem sabe, explicações para os mistérios da vida humana. Ambos peregrinaram - Zaqueu subiu em uma árvore; Poulenc, subiu à Rocamadour - e ambos experimentaram um encontro profundo com Deus, que lhes transformou a vida. E, com Poulenc, a mudança não é só na vida espiritual, mas em toda a sua dimensão. Sua obra, que chegou a ser desacreditada pela crítica no princípio de sua carreira, adquiriu maturidade, passando a disputar a supremacia no campo da música religiosa com a obra do compositor Oliver Messiaen, que até então, neste particular, era o mais distinto mestre desde a morte de Fauré. Aliás, Poulenc, diga-se de passagem, não foi sinfonista, mas um fecundo inventor de melodias. O trabalho com as vozes neste Gloria parece constituir a ponte entre seu espírito e o mundo exterior, como a fé, vivida na tensão e na pressa do mundo moderno. O ritmo marcado e tenso, acelerado num crescendo, de seu “Gloria in Excelsis Deo” é a representação da alma humana, dividida entre o céu e a terra. Que louva a Deus e suplica desesperadamente ao mesmo tempo. Segundo Claude Rostand, “coexistem em Poulenc o monge e o moleque, fórmula que resume toda a ambigüidade de sua obra”. Não entender o Gloria só é possível a quem se aliena desta realidade da luta da carne contra o espírito; a quem experimenta uma fé que perpassa mais os parâmetros da psicanálise do que propriamente da religião. Por isso, Poulenc estranha: “A segunda parte causou muito escândalo e eu fico perguntando por quê!? Eu apenas pensei, ao escrevê-la, naqueles afrescos de Gozzoli, nos quais os anjinhos mostram a língua, fazendo caretas; e também naqueles sisudos monges beneditinos que vi um dia jogando futebol...” Sem dúvida, o Gloria está longe de ser uma obra fingidamente religiosa ou beata. Não só por trazer traços de influência dos cantos negros das igrejas norte-americanas, berço do jazz - como nos sublimes solos do soprano - mas pela obstinação e teimosia; como teimosa é a alma que insiste em buscar a Deus, em meio ao caos em que vivemos. Contudo, esta obstinação e teimosia encontram descanso místico, por vezes, no canto angelical do soprano, e, mais intensamente, na profunda prece invocada no final, como a mostrar que nesta luta entre o espírito e a carne, entre o céu e a terra, Deus sempre sai vitorioso. E a alma sempre sobe, arrebatada de vez aos céus, como Poulenc acreditava ter sucedido com seu amigo. Afinal de contas, como proclama a própria liturgia da Igreja, somos uma humanidade santa e pecadora... Compilado e gentilmente cedido pela Orquestra Petrobras Pró Música. Outros comentários
Escrito para soprano, coro misto e orquestra, o oratório "Gloria" foi encomendado a Francis Poulenc (1899/1963) pela Fundação Koussevitzky e estreou sob a direção de Charles Munch em Boston/EUA, no dia 20 de janeiro de 1961. Poulenc estava orgulhoso de sua criação: "É o melhor que já fiz. Não mudaria nem uma nota só do coro, a não ser que as cantoras se esganicem no Lá bemol e alcancem um Si agudo". O espetacular apelo inicial - que parece uma citação da "Serenata em Lá", de Stravinsky - é repetido três vezes, com ligeiras variações na multicolorida e atraente orquestração. O coro entra, numa marcha exultante, sublinhada pelos jogos dos violinos e pela potência do metal e da percussão.
A obra é formada pelos seguintes movimentos: Gloria in excelsis Deo (maestoso) Laudamus Te (molto vivo e allegro) Domine Deus (lento) Domine Fili Unigenite (molto vivo e allegro) Domine Deus, Agnus Dei (molto lento) Qui sedes ad dexteram Patris (maestoso, allegretto)
O "Laudamus te" também começa com um certo tom stravinskyano no desenho dos instrumentos de sopro e de corda. Nesse movimento (que suscitou polêmicas por sua rítmica tão próxima às formas sincopadas do jazz), Poulenc joga com o vivaz diálogo do coro e, sobre a tonalidade em Dó maior, realiza múltiplas variações cromáticas. Com o "Gratias" nas vozes femininas quebra-se esse ambiente festivo, embora seja logo recuperado, com a mesma força, no "Propter magnam". No "Domine Deus", a soprano, em ardente declaração, proporciona temas ao coro e à orquestra - da qual se eliminam os metais, exceto as trompas - e cria um tecido de enorme beleza. O quarto número enlaça com o segundo: o coro, com suas repetições de texto, modula-o em um clima jovial e solto, tão característico de algumas das mais alegres e populares composições de Poulenc, como, porexemplo, Les Biches ou Les mamelles de Tiresias. O "Domine Deus, Agnus Dei" está construído a partir de um simples motivo de clarinete (que o compositor retoma na "Sonata para Clarinete e Piano", de 1963). As diversas elaborações têm como protagonista a soprano. O coro, sobre o qual surge por um momento a voz do tenor, mantém o canto e amplia as súplicas ("suscipe deprecationem nostram"). Nas cordas, alternam-se os pizzicati e as frases de grande intensidade, com os instrumentos de sopro ornamentando sutilmente o conjunto. O coro a capella, com reminiscências do cantochão, abre o "Qui sedes", logo interrompido pela orquestra, que exibe os apelos com os quais começava o "Gloria". O desenvolvimento dos integrantes é paralisado com a intervenção da soprano no "Amen", seguida pelo coro e pela orquestra em uma seção contemplativa. Reaparece, lentamente, o motivo do começo, e a conclusão possui uma atmosfera etérea, com a fragilidade da voz solista e o volátilsom das cordas e do tímbalo em pianissimo. (texto de David Cortés Santamarta, extraído do fascículo 33 da série "Música Sacra", ed. Altaya, 1996)
Escrito para soprano, coro misto e orquestra, o oratório "Gloria" foi encomendado a Francis Poulenc (1899/1963) pela Fundação Koussevitzky e estreou sob a direção de Charles Munch em Boston/EUA, no dia 20 de janeiro de 1961. Poulenc estava orgulhoso de sua criação: "É o melhor que já fiz. Não mudaria nem uma nota só do coro, a não ser que as cantoras se esganicem no Lá bemol e alcancem um Si agudo". O espetacular apelo inicial - que parece uma citação da "Serenata em Lá", de Stravinsky - é repetido três vezes, com ligeiras variações na multicolorida e atraente orquestração. O coro entra, numa marcha exultante, sublinhada pelos jogos dos violinos e pela potência do metal e da percussão.
A obra é formada pelos seguintes movimentos: Gloria in excelsis Deo (maestoso) Laudamus Te (molto vivo e allegro) Domine Deus (lento) Domine Fili Unigenite (molto vivo e allegro) Domine Deus, Agnus Dei (molto lento) Qui sedes ad dexteram Patris (maestoso, allegretto)
O "Laudamus te" também começa com um certo tom stravinskyano no desenho dos instrumentos de sopro e de corda. Nesse movimento (que suscitou polêmicas por sua rítmica tão próxima às formas sincopadas do jazz), Poulenc joga com o vivaz diálogo do coro e, sobre a tonalidade em Dó maior, realiza múltiplas variações cromáticas. Com o "Gratias" nas vozes femininas quebra-se esse ambiente festivo, embora seja logo recuperado, com a mesma força, no "Propter magnam". No "Domine Deus", a soprano, em ardente declaração, proporciona temas ao coro e à orquestra - da qual se eliminam os metais, exceto as trompas - e cria um tecido de enorme beleza. O quarto número enlaça com o segundo: o coro, com suas repetições de texto, modula-o em um clima jovial e solto, tão característico de algumas das mais alegres e populares composições de Poulenc, como, porexemplo, Les Biches ou Les mamelles de Tiresias. O "Domine Deus, Agnus Dei" está construído a partir de um simples motivo de clarinete (que o compositor retoma na "Sonata para Clarinete e Piano", de 1963). As diversas elaborações têm como protagonista a soprano. O coro, sobre o qual surge por um momento a voz do tenor, mantém o canto e amplia as súplicas ("suscipe deprecationem nostram"). Nas cordas, alternam-se os pizzicati e as frases de grande intensidade, com os instrumentos de sopro ornamentando sutilmente o conjunto. O coro a capella, com reminiscências do cantochão, abre o "Qui sedes", logo interrompido pela orquestra, que exibe os apelos com os quais começava o "Gloria". O desenvolvimento dos integrantes é paralisado com a intervenção da soprano no "Amen", seguida pelo coro e pela orquestra em uma seção contemplativa. Reaparece, lentamente, o motivo do começo, e a conclusão possui uma atmosfera etérea, com a fragilidade da voz solista e o volátilsom das cordas e do tímbalo em pianissimo. (texto de David Cortés Santamarta, extraído do fascículo 33 da série "Música Sacra", ed. Altaya, 1996)
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