quarta-feira, 18 de julho de 2007

RIMSKI-KORSAKOV, Nikolai - Shéhérazade, Op. 35

Todos nós já ouvimos falar dos contos d'As 1001 Noites.Todos nós já nos emocionamos com as aventuras de "Simbad, o Marujo" ou de "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa". O que se sabe é que muitos dos leitores infantis e adultos acabam ficando prejudicados em relação à obra como um todo. Poucos sabem que a personagem que inicia e termina esta coletânea de contos é uma figura feminina, meiga mas poderosa chamada Sheherazade (em persa, شهرزاد (Shahrzad ou fille de la ville) que vence a morte todas as noites para enfrentar a domar a rudeza de um Sultão poderoso em sofrimento. Como tecelã de toda esta trama, a contadeira de estórias logra através da palavra uma visão de mundo embrutecida pela imaturidade impulsiva masculina.
Esta é a estória de Xariar, senhor de terras distantes e exóticas, sultão de todas as Índias, da Pérsia e do Turquestão. Um belo dia, seu irmão Imperador da Grande Tartária, veio lhe contar que sua mulher o traía e que para sua infelicidade, também descobrira que fora traído pela mulher dele. Ambos chorosos e desiludidos concluiram que "Todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia, e não podem resistir à sua inclinação".
O Sultão, no auge do desespero, movido pela mais profunda desilusão propõe que ambos deveriam abandonar seus Estados com toda sua glória e opulência, e sair pelo mundo, em terras distantes, para se esconderem de tamanho infortúnio. O irmão, pesaroso mas envergonhado aceita sob a condição de que voltariam se encontrassem alguém mais infeliz do que eles próprios. E assim seguiram o seu caminho, disfarçados, até chegarem a uma praia distante onde se vêem surpreendidos por algo que parecia mais com um maremoto. Os dois sobem em uma árvore e se escondem entre os galhos para avistarem, em meio a turbulência, um gênio (um djinn) tirando do fundo do mar uma grande caixa de vidro, fechada a quatro chaves, onde estava aprisionada uma jovem e linda mulher, que ele libera da caixa. Era uma donzela que ele havia raptado para ser sua esposa e a mantinha trancafiada no fundo do mar para que ninguém a roubassem. O malvado gênio, muito cançado diz à mulher que gostaria de repousar sua cabeça em seus joelhos e dormir um pouco.
A bela mulher acaba por descobrir os dois irmãos no meio das folhagens e se dirige à eles. Calma e delicadamente ela retira a cabeça do monstro de seu colo, vai para baixo da árvore e propõe aos dois irmãos que tenham relação com ela. Eles ficam petrificados, pela audácia da jovem e pela presença do gênio, e prontamente se recusam. Mas ela os força usando exatamente o argumento de que se eles não atendessem a sua vontade ela acordaria o gênio e lhe contaria que eles queriam molestá-la. Vendo-se obrigados, eles a satisfazem; primeiro o mais velho e depois o caçula. Quando tudo termina a jovem pede para cada um dos irmãos um anel como lembrança do ocorrido. E bem diante de seus olhos arregalados ela abre uma pequena bolsa onde já continha outros 98 anéis de homens que já a tinham possído. E diz calmamente: "Com esses dois, completo uma centena". Apesar de toda a vigilância e precaução ciumenta e doentia do gênio, ela completara uma centena de amantes. E ele que se empenhava tanto para encerrá-la em uma caixa no fundo do mar, querendo-a só para si. Assim a mulher volta a se sentar e coloca suavemente a cabeça do gênio novamente em seu colo, e enquanto ele continuava a dormir calmamente, ela diz:"Vede que, quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir a sua realização."
Os dois irmãos,sem dizer nada, olham entre si e iniciam o caminho de volta comentando que nada neste mundo ultrapassava a astúcia e malícia das mulheres, e que, mesmo poderoso, aquele pobre djinn era a mais infeliz das criaturas. E assim, convencidos da perfídia das mulheres, os dois prontamente decidem voltar cada um para o seu reino.
O Sultão Xeriar, desta forma arma um plano que lhe permitiria proteger a sua honra sem que fosse obrigado a abrir mão das mulheres. Era o seguinte: a cada noite ele dormiria com uma donzela virgem, e na manhã seguinte ordenava ao seu Grão-Vizir que a matasse, para garantir que não seria traído. Desta forma, ele escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. Cumprindo sua determinação, a cada dia uma jovem se casava e morria para enorme desolamento de seus súditos.
O Grão-Vizir, de inquestionável lealdade, mas muito contra sua vontade, a cada noite apresentava ao Sultão uma nova virgem, e a cada manhã era obrigado a matá-la. E para sua infelicidade, ele próprio tinha duas filhas: Sheherazade e Dinerzade.
Sheherazade tinha uma coragem maior do que se seria de esperar de alguém do seu sexo, e um espírito de admirável penetração. Amava a leitura e possuía uma memória prodigiosa pois conseguia reter tudo que ela havia lido. Concetrara com sucesso ao estudo da filosofia, medicina e belas-artes e fazia versos melhores do que os maiores poetas de sua época. E para coroar todas estas virtudes ela ainda era dotada de uma beleza incomparável.
Pois bem, um belo dia é a própria Sheherazade que se aproxima do Grão-Vizir, seu pai, e lhe comunica que deseja ser a próxima mulher do Sultão. Em suas palavras: " Desejo por um termo a essa barbárie que o Sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, prestarei um serviço importante à minha pátria."
Desta forma, arquiteta um plano com a irmã: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial( com a desculpa de que queriam passar esta última noite próximas), e uma hora antes de romper o dia, deveria acordar Sheherazade e lhe pedir que contasse uma de suas estórias. É o que sucede: Depois de ter dormido com o Sultão no leito nupcial, Sheherazade é despertada pela irmã, que lhe pede uma estória - talvez pela última vez. Depois de conseguir a permissão do Sultão, Sheherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando o desfeche está para ser definido e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se aproximava, ela suspende a narrativa: Ela para de falar pois percebendo que já era dia e que o Sultão se levantava bem cedo para gerir seus negócios de Estado.
E asssim, diante das observações da irmã de que a estória era maravilhosa, Sheherazade então afirma que a cotinuação seria ainda mais maravilhosa e que, se o Sultão assim o permitisse, poderia terminá-la na noite seguinte.
Desta forma Sheherazade ganha mais um dia de vida.
Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Sheherazade atende à curiosidade do Sultão terminando a estória interrompida na noite anterior e começa uma nova, que novamente é interrompida no auge do suspense, ao romper da aurora.
E assim, noite após noite, Sheherazade se preparava para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompia sua narrativa sem antes deixar de acrescentar novos personagens com qualidades marcantes e intrigantes aguçando a cuiriosidade de Xeriar deixando-o sempre na espera de algum acontecimento singular. O Sultão declara desejar ouvir a estória iniciada na véspera, deixando-a viver por mais um dia, e havia mesmo algumas noites que ficava até impaciente à espera da noite seguinte. Esta foi a forma extremamente sutil e feminina de Sheherazade de conseguir, sem garantias nem imposições, nem sequer um mero pedido para continuar viva. O Sultão é que lhe garante esta concessão. Dia após dia, Sheherazade arrisca a perder a sua própria vida a fim de restaurar ao Sultão a imagem feminina há muito perdida através de infidelidades.
E quando chega a milésima primeira noite, o Sultão finalmente se rende. 1001 noites haviam se passado nesses inocentes dirvetimentos que paulatinamente foram atuando sobre o Sultão no sentido de diminuir suas prevenções iradas contra a fidelidade das mulheres. Seu coração havia se abrandado e finalmente convencido da sabedoria de Sheherazade, lembrava-se da coragem com a qual ela havia se exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem apreeensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte.
E o Sultão assim o declara: Bem vejo, minha doce e amável Sheherazade, que sois inesgotável em vossas narativas; há muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado à lei cruel imposta por mim... Desejo que sejais considerada aquela que libertou todas as donzelas que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento.


A obra de RIMSKI-KORSAKOV

Sucede-se ao Capricho Espanhol e foi composta entre fevereiro e julho de 1888, tendo sua premiére em S. Petersburgo em 1889. Inspirada nos contos das "Mil e uma Noites" Está dividida nas seguintes partes:


I. La mer et le vaisseau de Simbad (Largo e maestoso — Allegro non troppo): o primeiro movimento abre-se bobre uma introdução que apresenta os dis protagonistas, o Sultão e Shéhérazade. O tema inicial, fortíssimo em uníssono, dominado pelos metais, estabelece o terrível personágem Shahriar. Após uma pausa, transição em 5 longos acordes nas madeiras - criando um fascimente contraste e estabelecendo a atmosfera de contos de fadas.


Logo após, um violino solo, pontuado pela harpa, desenha no agudo a fina melodia oriental que unirá todos os movimentos - ao mesmo tempo que servirá de matriz para outros temas: é o leitmotiv de Shéhérazade.

Rimski-Korsakov que escreveu sobre a obra nas "Chroniques de ma vie musicale" (crônicas de minha vida musical). Segue texto original:

« C'est en vain que l'on cherche des leitmotive toujours liés à telles images. Au contraire, dans la plupart des cas, tous ces semblants de leitmotive ne sont que des matériaux purement musicaux du développement symphonique. Ces motifs passent et se répandent à travers toutes les parties de l'œuvre, se faisant suite et s'entrelaçant. Apparaissant à chaque fois sous une lumière différente, dessinant à chaque fois des traits distincts et exprimant des situations nouvelles, ils correspondent chaque fois à des images et des tableaux différents.»

Este tema foi tirado textualmente do poema sinfônico de Balakirev - Thamar. O tema que era do sultão adquire nova atribuição - docemente balançado por arpejos das cordas. Depois da doce subida dos acordes e de um grandioso desenho da fauta como tema secundário, volta o de Shéhérazade; e ele logo dá lugar aonascimento a uma nova figuração pelo conjunto das madeiras. Levanta-se uma tempestade, sacudindoo navio sobre as ondas: um possante crescendo traz a superposição dos dois motivos. O caráter de todo o movimento faz alternar a descrição rica em cores com a evocação mais puramente poética e sutil. A forma do conjunto poderia ser definida como A-A', com a transição entre os dois pontos efetuados pelo retorno da subida dos acordes (violinos divididos), bem como pelo motivo secundário que aparece sucessivamente no clarinete,oboé e na flauta. è sobre esse mesmos acordes que se conclui o movimento.

II. Le récit du prince Calender (Lento — Andantino — Allegro molto — Con moto): após uma citação do tema de Shéhérazade, um fagote executa um novo motivo que surge, mas de caráter diverso, mais ritmado, porém ágil. Ele é retomado pelo oboé, pelos violinos, o conjunto das madeiras, antes de introduzir uma brusca mudança de atmosfera. Fanfarras de toque vibrante (trombone, depois trompete) multiplicam-se e repercutem em toda a orquestra, dando-nos a visão de uma batalha. Uma longa frase cadenciada no clarinete, sobre a repetição rápida e obsessiva de uma fórmula em tercinas de notas conjuntas, prepara novo episódio. Os pequenos vôos das madeiras, os tremolos dos violinos no agudo evocam a passagem do Pássaro de Roca. Mas o desenvolvimento traz de volta as fanfarras abundantemente exploradas pela orquestra. Volta a frase em tercinas, primeiro no fagote e depois, mais brevemente, em outros instrumentos, oboé, flauta, clarinete... e reaparece o primeiro tema que irá alternar-se com ela até o final do movimento. Na Coda, voltamos a encontrar o tema do Sultão, ou do mar.

III. Le jeune prince et la jeune princesse (Andantino quasi allegretto — Pochissimo più mosso — Come prima — Pochissimo più animato): essa maravilhosa página lírica é sucessivamente dominada por dois temas que, embora não sendo melodias orientais autênticas, são bastante aparentados com as da coletanea de Salvador Daniel, usadas em Antar. De início, aparece o tema do Príncipe, em sol maior, exposto nos violinos, parafraseando a seguir, entre guirlandas de escalas no clarinete, na flauta e nos violinos. Vem então o tema da Princesa, no mesmo filão, porém mais vivo, na tonalidade de si bemol maior - com ritmo marcado pelo tamborim, depois pelo trompete. A reexposição do primeiro tema intercala a cadência do violino solo com o motivo de Shéhérazade prolongado por uma mistura de arpejos. A seguir, a paráfrase, consideravelmente reduzida, do primeiro tema, e depois do segundo, conduz à Coda cujos últimos compassos são discretamente avivados por tercinas descendentes das madeiras, e pelo pianissimo da percussão.
IV. Fête à Bagdad - La Mer - Le Vaisseau se brise sur un rocher surmonté d'un guerrier d'airain (Allegro molto — Vivo — Allegro non troppo maestoso): a introdução faz ouvir alternadamente o tema do Sultão sob nova forma, e o de Shéhérazade em acordes do violino. A Festa começa com a indicação Vivo, com motivo rápido em rítmo pontuado:todo o tematismo, aqui, será caracterizado por motivos cerrados e turbilhonantes - alguns deles saídos da Narrativa do Príncipe Kalendar, outros retomados da parte precedente (tema da Princesa). O crescimento do tense coletivo efetua-se por um crescendo orquestral, com uso cada vez mais constante da percussão; no entanto Korsakov consegue, também, mais para o final, movimentos de distensão. Um último crescendo conduz, sem interrupção, ao último quadro: é novamente O Mar com seu domínio dos arpejos e sua animação progressiva,com o sacudir das vagas e o sibilar dos ventos em escalas cromáticas das madeiras, até o choque do Naufrágio, marcado por um golpe do tantã. A retomada de um fragmento do primeiro movimento recria a seguir um clima onírico, ea obra termina sobre o tema de Shéhérazade, que morre no extremo agudo do violino.

Extraido do livro: Guia da música sinfônica de François-René Tranchefort - Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro

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