Esta é a estória de Xariar, senhor de terras distantes e exóticas, sultão de todas as Índias, da Pérsia e do Turquestão. Um belo dia, seu irmão Imperador da Grande Tartária, veio lhe contar que sua mulher o traía e que para sua infelicidade, também descobrira que fora traído pela mulher dele. Ambos chorosos e desiludidos concluiram que "Todas as mulheres são naturalmente levadas pela infâmia, e não podem resistir à sua inclinação".
O Sultão, no auge do desespero, movido pela mais profunda desilusão propõe que ambos deveriam abandonar seus Estados com toda sua glória e opulência, e sair pelo mundo, em terras distantes, para se esconderem de tamanho infortúnio. O irmão, pesaroso mas envergonhado aceita sob a condição de que voltariam se encontrassem alguém mais infeliz do que eles próprios. E assim seguiram o seu caminho, disfarçados, até chegarem a uma praia distante onde se vêem surpreendidos por algo que parecia mais com um maremoto. Os dois sobem em uma árvore e se escondem entre os galhos para avistarem, em meio a turbulência, um gênio (um djinn) tirando do fundo do mar uma grande caixa de vidro, fechada a quatro chaves, onde estava aprisionada uma jovem e linda mulher, que ele libera da caixa. Era uma donzela que ele havia raptado para ser sua esposa e a mantinha trancafiada no fundo do mar para que ninguém a roubassem. O malvado gênio, muito cançado diz à mulher que gostaria de repousar sua cabeça em seus joelhos e dormir um pouco.
A bela mulher acaba por descobrir os dois irmãos no meio das folhagens e se dirige à eles. Calma e delicadamente ela retira a cabeça do monstro de seu colo, vai para baixo da árvore e propõe aos dois irmãos que tenham relação com ela. Eles ficam petrificados, pela audácia da jovem e pela presença do gênio, e prontamente se recusam. Mas ela os força usando exatamente o argumento de que se eles não atendessem a sua vontade ela acordaria o gênio e lhe contaria que eles queriam molestá-la. Vendo-se obrigados, eles a satisfazem; primeiro o mais velho e depois o caçula. Quando tudo termina a jovem pede para cada um dos irmãos um anel como lembrança do ocorrido. E bem diante de seus olhos arregalados ela abre uma pequena bolsa onde já continha outros 98 anéis de homens que já a tinham possído. E diz calmamente: "Com esses dois, completo uma centena". Apesar de toda a vigilância e precaução ciumenta e doentia do gênio, ela completara uma centena de amantes. E ele que se empenhava tanto para encerrá-la em uma caixa no fundo do mar, querendo-a só para si. Assim a mulher volta a se sentar e coloca suavemente a cabeça do gênio novamente em seu colo, e enquanto ele continuava a dormir calmamente, ela diz:"Vede que, quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir a sua realização."
Os dois irmãos,sem dizer nada, olham entre si e iniciam o caminho de volta comentando que nada neste mundo ultrapassava a astúcia e malícia das mulheres, e que, mesmo poderoso, aquele pobre djinn era a mais infeliz das criaturas. E assim, convencidos da perfídia das mulheres, os dois prontamente decidem voltar cada um para o seu reino.
O Sultão Xeriar, desta forma arma um plano que lhe permitiria proteger a sua honra sem que fosse obrigado a abrir mão das mulheres. Era o seguinte: a cada noite ele dormiria com uma donzela virgem, e na manhã seguinte ordenava ao seu Grão-Vizir que a matasse, para garantir que não seria traído. Desta forma, ele escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. Cumprindo sua determinação, a cada dia uma jovem se casava e morria para enorme desolamento de seus súditos.
O Grão-Vizir, de inquestionável lealdade, mas muito contra sua vontade, a cada noite apresentava ao Sultão uma nova virgem, e a cada manhã era obrigado a matá-la. E para sua infelicidade, ele próprio tinha duas filhas: Sheherazade e Dinerzade.
Sheherazade tinha uma coragem maior do que se seria de esperar de alguém do seu sexo, e um espírito de admirável penetração. Amava a leitura e possuía uma memória prodigiosa pois conseguia reter tudo que ela havia lido. Concetrara com sucesso ao estudo da filosofia, medicina e belas-artes e fazia versos melhores do que os maiores poetas de sua época. E para coroar todas estas virtudes ela ainda era dotada de uma beleza incomparável.
Pois bem, um belo dia é a própria Sheherazade que se aproxima do Grão-Vizir, seu pai, e lhe comunica que deseja ser a próxima mulher do Sultão. Em suas palavras: " Desejo por um termo a essa barbárie que o Sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, prestarei um serviço importante à minha pátria."
Desta forma, arquiteta um plano com a irmã: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial( com a desculpa de que queriam passar esta última noite próximas), e uma hora antes de romper o dia, deveria acordar Sheherazade e lhe pedir que contasse uma de suas estórias. É o que sucede: Depois de ter dormido com o Sultão no leito nupcial, Sheherazade é despertada pela irmã, que lhe pede uma estória - talvez pela última vez. Depois de conseguir a permissão do Sultão, Sheherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando o desfeche está para ser definido e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se aproximava, ela suspende a narrativa: Ela para de falar pois percebendo que já era dia e que o Sultão se levantava bem cedo para gerir seus negócios de Estado.
E asssim, diante das observações da irmã de que a estória era maravilhosa, Sheherazade então afirma que a cotinuação seria ainda mais maravilhosa e que, se o Sultão assim o permitisse, poderia terminá-la na noite seguinte.
Desta forma Sheherazade ganha mais um dia de vida.
Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Sheherazade atende à curiosidade do Sultão terminando a estória interrompida na noite anterior e começa uma nova, que novamente é interrompida no auge do suspense, ao romper da aurora.
E assim, noite após noite, Sheherazade se preparava para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompia sua narrativa sem antes deixar de acrescentar novos personagens com qualidades marcantes e intrigantes aguçando a cuiriosidade de Xeriar deixando-o sempre na espera de algum acontecimento singular. O Sultão declara desejar ouvir a estória iniciada na véspera, deixando-a viver por mais um dia, e havia mesmo algumas noites que ficava até impaciente à espera da noite seguinte. Esta foi a forma extremamente sutil e feminina de Sheherazade de conseguir, sem garantias nem imposições, nem sequer um mero pedido para continuar viva. O Sultão é que lhe garante esta concessão. Dia após dia, Sheherazade arrisca a perder a sua própria vida a fim de restaurar ao Sultão a imagem feminina há muito perdida através de infidelidades.
E quando chega a milésima primeira noite, o Sultão finalmente se rende. 1001 noites haviam se passado nesses inocentes dirvetimentos que paulatinamente foram atuando sobre o Sultão no sentido de diminuir suas prevenções iradas contra a fidelidade das mulheres. Seu coração havia se abrandado e finalmente convencido da sabedoria de Sheherazade, lembrava-se da coragem com a qual ela havia se exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem apreeensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte.
E o Sultão assim o declara: Bem vejo, minha doce e amável Sheherazade, que sois inesgotável em vossas narativas; há muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado à lei cruel imposta por mim... Desejo que sejais considerada aquela que libertou todas as donzelas que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento.
Logo após, um violino solo, pontuado pela harpa, desenha no agudo a fina melodia oriental que unirá todos os movimentos - ao mesmo tempo que servirá de matriz para outros temas: é o leitmotiv de Shéhérazade.
Rimski-Korsakov que escreveu sobre a obra nas "Chroniques de ma vie musicale" (crônicas de minha vida musical). Segue texto original:
« C'est en vain que l'on cherche des leitmotive toujours liés à telles images. Au contraire, dans la plupart des cas, tous ces semblants de leitmotive ne sont que des matériaux purement musicaux du développement symphonique. Ces motifs passent et se répandent à travers toutes les parties de l'œuvre, se faisant suite et s'entrelaçant. Apparaissant à chaque fois sous une lumière différente, dessinant à chaque fois des traits distincts et exprimant des situations nouvelles, ils correspondent chaque fois à des images et des tableaux différents.»
Este tema foi tirado textualmente do poema sinfônico de Balakirev - Thamar. O tema que era do sultão adquire nova atribuição - docemente balançado por arpejos das cordas. Depois da doce subida dos acordes e de um grandioso desenho da fauta como tema secundário, volta o de Shéhérazade; e ele logo dá lugar aonascimento a uma nova figuração pelo conjunto das madeiras. Levanta-se uma tempestade, sacudindoo navio sobre as ondas: um possante crescendo traz a superposição dos dois motivos. O caráter de todo o movimento faz alternar a descrição rica em cores com a evocação mais puramente poética e sutil. A forma do conjunto poderia ser definida como A-A', com a transição entre os dois pontos efetuados pelo retorno da subida dos acordes (violinos divididos), bem como pelo motivo secundário que aparece sucessivamente no clarinete,oboé e na flauta. è sobre esse mesmos acordes que se conclui o movimento.
II. Le récit du prince Calender (Lento — Andantino — Allegro molto — Con moto): após uma citação do tema de Shéhérazade, um fagote executa um novo motivo que surge, mas de caráter diverso, mais ritmado, porém ágil. Ele é retomado pelo oboé, pelos violinos, o conjunto das madeiras, antes de introduzir uma brusca mudança de atmosfera. Fanfarras de toque vibrante (trombone, depois trompete) multiplicam-se e repercutem em toda a orquestra, dando-nos a visão de uma batalha. Uma longa frase cadenciada no clarinete, sobre a repetição rápida e obsessiva de uma fórmula em tercinas de notas conjuntas, prepara novo episódio. Os pequenos vôos das madeiras, os tremolos dos violinos no agudo evocam a passagem do Pássaro de Roca. Mas o desenvolvimento traz de volta as fanfarras abundantemente exploradas pela orquestra. Volta a frase em tercinas, primeiro no fagote e depois, mais brevemente, em outros instrumentos, oboé, flauta, clarinete... e reaparece o primeiro tema que irá alternar-se com ela até o final do movimento. Na Coda, voltamos a encontrar o tema do Sultão, ou do mar.
III. Le jeune prince et la jeune princesse (Andantino quasi allegretto — Pochissimo più mosso — Come prima — Pochissimo più animato): essa maravilhosa página lírica é sucessivamente dominada por dois temas que, embora não sendo melodias orientais autênticas, são bastante aparentados com as da coletanea de Salvador Daniel, usadas em Antar. De início, aparece o tema do Príncipe, em sol maior, exposto nos violinos, parafraseando a seguir, entre guirlandas de escalas no clarinete, na flauta e nos violinos. Vem então o tema da Princesa, no mesmo filão, porém mais vivo, na tonalidade de si bemol maior - com ritmo marcado pelo tamborim, depois pelo trompete. A reexposição do primeiro tema intercala a cadência do violino solo com o motivo de Shéhérazade prolongado por uma mistura de arpejos. A seguir, a paráfrase, consideravelmente reduzida, do primeiro tema, e depois do segundo, conduz à Coda cujos últimos compassos são discretamente avivados por tercinas descendentes das madeiras, e pelo pianissimo da percussão.
IV. Fête à Bagdad - La Mer - Le Vaisseau se brise sur un rocher surmonté d'un guerrier d'airain (Allegro molto — Vivo — Allegro non troppo maestoso): a introdução faz ouvir alternadamente o tema do Sultão sob nova forma, e o de Shéhérazade em acordes do violino. A Festa começa com a indicação Vivo, com motivo rápido em rítmo pontuado:todo o tematismo, aqui, será caracterizado por motivos cerrados e turbilhonantes - alguns deles saídos da Narrativa do Príncipe Kalendar, outros retomados da parte precedente (tema da Princesa). O crescimento do tense coletivo efetua-se por um crescendo orquestral, com uso cada vez mais constante da percussão; no entanto Korsakov consegue, também, mais para o final, movimentos de distensão. Um último crescendo conduz, sem interrupção, ao último quadro: é novamente O Mar com seu domínio dos arpejos e sua animação progressiva,com o sacudir das vagas e o sibilar dos ventos em escalas cromáticas das madeiras, até o choque do Naufrágio, marcado por um golpe do tantã. A retomada de um fragmento do primeiro movimento recria a seguir um clima onírico, ea obra termina sobre o tema de Shéhérazade, que morre no extremo agudo do violino.
Extraido do livro: Guia da música sinfônica de François-René Tranchefort - Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro
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