segunda-feira, 11 de junho de 2007

JANACEK, Leos - Jenufa

Jenufa é a terceira ópera de Leos Janácek (cujo nome pronuncia-se "léosh iánatchek"). Antes, ele escrevera Sharka, muito influenciada por Smetana e Dvorák, e Começo de Romance, ainda de aprendizagem, mas já baseada em um conto de Gabriela Preissová - a responsável pela criação do teatro realista tcheco em que é retratada a área rural. É dela a peça Její Pastorkyna (A Enteada Dela), em que Jenufa se baseia. Composta durante um longo período (1894-1903), estreada em Brno, a capital da Moravia, onde Janácek residia, em 21 de janeiro de 1904, mas depois submetida a extensas revisões, Jenufa é um divisor de águas na obra de seu compositor. Ela marca o momento em que o músico talentoso do início da carreira - que não teria deixado marca maior na história da música se morresse antes dos 50 anos que tinha quando Jenufa foi estreada - consolida seu idioma personalíssimo e dá a guinada para uma produção, sobretudo no campo da ópera, que lhe confere o status de um dos maiores operistas da história do gênero. Os nove anos de gestação da Jenufa foram muito difíceis, marcados pelo sofrimento. Em outubro de 1890, o músico já tinha perdido o filho Vladimír, de dois anos, vítima de escarlatina. Em seguida, além de seu casamento com Zdenka Janácková estar entrando em crise, ele viu declinar lentamente, a partir de 1902, a saúde de Olga, a sua filha. Ela morreu de tuberculose em 26 de fevereiro de 1903, aos 21 anos. Janácek escreveu, ao terminar a ópera: "A partitura deveria ser atada com a fita negra da longa doença, dos sofrimentos e das queixas de minha filha Olga e de meu filhinho Vladimír." A dor dessas perdas se reflete na forma intensa como ele se identifica com os conflitos psicológicos de suas personagens. Janácek dá tratamento muito respeitoso ao texto de Gabriela Preissová. Faz cortes, mas não altera em nada os trechos que utiliza, e mantém os episódios exatamente na ordem em que aparecem na peça. Esse respeito não o impede de operar modificações fundamentais na personalidade de Kostelnícka, fazendo dela uma mulher monolítica e autoritária, cuja dureza contrasta com a doçura de Jenufa. O carinho que ela sente pela enteada não é muito aparente no início da ópera. O foco dramático pode, assim, deslocar-se para a figura da moça, que evolui da passividade inicial para uma grande elevação de alma no fim: através do sofrimento, ela se transforma numa pessoa madura, capaz de compreender, perdoar e buscar o caminho da renovação. O destaque dado a Jenufa justifica a opção de Max Brod que, ao traduzir a ópera para o alemão, batizou-a com seu nome, e assim ela passou a ser conhecida no Ocidente (na República Tcheca, continua a ter o nome de Její Pastorkyna). A oposição entre enteada e madrasta está muito clara na escolha dos registros vocais. Jenufa é um soprano lírico, o que corresponde à sua juventude e frescor. Kostelnícka é um soprano dramático de acentos amplos e retóricos - o que significa que uma mesma cantora, ao amadurecer, pode passar de um papel para o outro. A narrativa de Jenufa se inscreve no ritmo das estações: o ato I passa-se no verão; o infanticídio é cometido em pleno inverno; a confissão e o perdão ocorrem no florescer da primavera, fechando o círculo ao remeter à primavera anterior ao início da peça, em que a criança tinha sido concebida. O senso teatral de Janácek está presente em cada página. Em Jenufa, é notável a economia e a profundidade de visão que o observador, dotado de agudo senso da compreensão psicológica, tem de suas criaturas, sem que haja um só tempo morto no desenvolvimento dramático. A linha vocal de Kostelnícka é angulosa, declamatória, com saltos de oitava que enfatizam a aspereza de seu temperamento. A de Jenufa tem estilo sempre cantabile. Um de seus mais belos momentos é o monólogo do ato II, quando ela acorda sozinha, em casa da Kostelnícka, angustiada, cheia de maus pressentimentos, e reza a Salve Rainha, pedindo pedindo a proteção da Virgem. E o canto apaixonadamente lírico da protagonista culmina na nobreza da melodia da última cena - o primeiro daqueles finais apoteóticos, triunfantes, que serão característicos do drama janácekiano. Trabalhando com um texto em prosa, Janácek teve de resolver o problema da criação de uma linha vocal que aderisse aos ritmos da frase falada, questão que sempre o fascinara, que discutiu em inúmeros ensaios, e na qual foi confessadamente influenciado pelas experiências pioneiras de Aleksandr Dargomýjski (O Convidado de pedra) e Módest Mússorgski (O Casamento, Borís Godunóv, Khovânshtchina) - influência que deve também ser creditada à sua profunda russofilia: ele sempre teve forte atração pela língua, literatura, costumes e idéias pré-revolucionárias vindas da Rússia, e em Gógol, Tolstói, Rostróvski e Dostoiévski buscou inspiração para o poema sinfônico Tarás Bulba, o quarteto Sonata a Kreutzer, e as óperas Katya Kabánova e Da Casa dos Mortos. Mas ao buscar a solução para o problema de uma melodia que se moldasse à natureza muito peculiar da frase tcheca, com suas poucas vogais e sua ríspida e flutuante acentuação tônica, dá um nítido passo adiante em relação às pesquisas de seus modelos russos. O arioso de estilo silábico predomina. São raras as passagens líricas, reservadas a momentos de emoção intensa, em que as curvas melódicas são mais flexíveis e utilizam-se notas de valor mais longo. São pouco freqüentes também os duetos e trios em que as vozes são simultâneas. E quando isso acontece, é apenas durante alguns compassos, ao sabor de uma aproximação afetiva irrefreável. A justaposição das vozes é reservada para alguns poucos momentos climáticos. O resultado disso é que, nos raros instantes em que as vozes se unem, é muito mais forte o efeito obtido. Ascético torna-se também o uso de motivos recorrentes, feitos de pequenas células sonoras que não se desenvolvem de maneira clássica, mas se aglutinam em ostinatos. Esse uso é restrito a uns poucos temas marcantes, como o que está associado ao bebê de Jenufa. O retorno dessa melodia, em pontos bem escolhidos, é sempre de forte impacto. Muito original é o efeito obtido com a figura rítmica no xilofone, que ouvimos logo no início da ópera: ela reaparece constantemente, pontuando certas passagens da ação particularmente tensas. Essa figura representa o ruído da mó girando sem parar, um barulho tão constante que, por escutá-lo o dia inteiro, as pessoas já nem o ouvem mais. Ele surge, porém, nos momentos conflituosos em que as personagens se calam. Cada vez que isso acontece, o ruído da mó ocupa repentinamente o espaço sonoro vazio, constituindo um elemento a mais para aumentar a tensão. A harmonia de Jenufa é muito pessoal, repousando sobre a utilização de escalas modais que a vinculam à música folclórica morávia. Com freqüência a coesão da cena é assegurada pela presença das tonalidades bemolizadas - lá bemol, ré bemol, sol bemol e suas relativas menores correspondentes - que, para Janácek, assumem um valor de fetiche. São comuns nele também as chamadas "resoluções excepcionais", encadeamentos de intervalos de sétima ou nona, que fazem do universo harmônico de Janácek um mundo inteiramente à parte, com um sabor próprio, com enarmonias freqüentes e armaduras de clave surpreendentes. Sinopse Sobre a peça e a ópera paira a figura da Kostelnícka (a Sacristã), ajudante de igreja, parteira, conselheira conjugal, mulher de grande autoridade dentro da aldeia. Madrasta de Jenufa - por isso a peça de Preissová chama-se A Enteada Dela - gosta dela à sua maneira rude e desajeitada e quer evitar que no casamento a menina se dê mal como aconteceu com ela, ao casar-se em segundas núpcias com o pai de Jenufa. Kostelnícka teme que Jenufa seja infeliz ao casar-se com Steva, seu primo, homem bonito, sedutor, muito mulherengo. Jenufa também é amada por Laca, irmão por afinidade de Steva (a mãe de Laca casou-se em segundas núpcias com o pai de Steva). Laca morre de inveja do meio-irmão, mais rico e bonito do que ele, e alvo do amor da mulher por quem ele está apaixonado. Num rompante de ciúme desesperado, Laca destrói o que Jenufa tem de mais bonito: dá em seu rosto uma navalhada que a desfigura. Depois que esse ferimento a enfeia, Steva perde o interesse por ela. Mas Jenufa está grávida do primo e a Sacristã, para não deixá-la sozinha, tenta promover seu casamento com Laca - que a aceita, pois a ama profundamente; mas recusa-se a adotar o filho de Steva. Kostelnícka diz-lhe então que o bebê nasceu morto. Numa tentativa desastrada de preservar a enteada, aproveita que, depois do parto, Jenufa está desacordada, com febre, e afoga o bebê no riacho que move o moinho da família. Quando Jenufa desperta, Kostelnícka lhe diz que o bebê morreu pouco depois de nascer e já foi secretamente enterrado. No dia do casamento de Jenufa com Laca, camponeses vêm anunciar terem encontrado o cadáver de um bebê boiando no rio. Quando Jenufa, horrorizada, reconhece-o como o seu, todos a acusam de assassinato, exceto Laca, que a defende com veemência. Cheia de remorsos, Kostelnícka confessa seu crime e é levada presa. Sozinha com Laca, Jenufa lhe diz: agora que terá de enfrentar o processo pela morte do filho, ele pode sentir-se desobrigado da promessa de esposá-la. Mas Laca reafirma seu amor e a vontade de tê-la como mulher. Percebendo finalmente a profundidade de seus sentimentos, Jenufa estende-lhe a mão dizendo: "Laca, minha alma, vem! O que te traz a mim é o amor - o maior amor, com o qual o coração de Deus se regozija!" DISCOGRAFIA Furioso com Janácek, que demolira sua ópera Os Noivos, quando ela estreou em Brno, o diretor do Teatro Nacional, Karel Kovarovic, recusou-se a aceitar Jenufa em Praga. Só voltou atrás em 1916, mas com uma condição: que lhe fosse permitido "corrigir" a orquestração. Ansioso por ver a ópera encenada na capitãl, Janácek concordou. O trabalho de Kovarovic é bonito, mas convencional. Infelizmente, essa versão manipulada, editada pela Universal Verlag, é usada até hoje. Em 1983, sir Charles Mackerras, grande especialista em Janácek, gravou a edição crítica do original, que fez com John Tyrrell a partir dos manuscritos do compositor. Texto de Lauro Machado Coelho

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