quarta-feira, 9 de maio de 2007

BERIO, Luciano - Sinfonia para 8 vozes e orquestra

Maldita invenção é a arte da citação em música. Quem a pratica está sempre solicitado a se justificar. Um tabu que se renova e parece desafiar até mesmo as mais generosas formulações de estéticas contemporâneas. Copia-se inesgotavelmente um modelo qualquer e isto passa despercebido; mas a mais discreta menção a uma estrutura musical consagrada chega-nos rapidamente à percepção e suscita em muitos a vontade da crítica.
Um compositor paulista fez certa vez o seguinte comentário sobre o fato das citações serem sempre lembradas quando se pensa em sua música: gente aponta para o céu e as pessoas ficam olhando para o dedo”.
Luciano Berio, no contexto de uma discussão sobre sua Sinfonia, respondeu o seguinte sobre a prática da citação em seu processo de trabalho: rtamente fiz alusões aqui e acolá, mas não mais do que Wagner ao ressuscitar o Rei Marke (de Tristão e Isolda) nos Mestres Cantores... ou Beethoven que cita Don Giovanni (de Mozart) em suas Variações Diabelli...”
Mas aceitemos a provocação e olhemos um pouco para aquele dedo, eventualmente o médio, esticado e apontado na direção de uma certa elite: Berio faz parte de um restrito círculo de compositores europeus que mais se abre à assimilação de um universo artístico e intelectual multicultural; é talvez o único daquele grupo que transcende, de fato e desde o início, à formulação adorniana de vanguarda para buscar o convívio direto, seja de fatos musicais da história, seja de músicas ditas “não polifônicas” de tradições orais, ou seja, pura e simplesmente, da palavra poética de várias origens, com a qual estabelece uma inusitada relação – neste último aspecto, ele se assemelha a Alban Berg, que anos antes enfrentara o problema de combinar voz e melodia a estruturas sonoras complexas. Até questionando o papel da citação em si mesma, Berio soube praticar estas aproximações multicontextuais, percorrer caminhos de “outras esferas”, de forma sempre surpreendente. Em sua extensa obra, transparecem melodias de tradições diversas em arranjos/criações inesperados, a paisagem pop da Londres dos anos 60, a realidade virtual de um esboço de Schubert, a densidade harmônica extraída de um estilo centro-africano, a atmosfera de aparente descontração dos ambientes jazzísticos...
Mas é em sua Sinfonia, escrita entre 1968-9, que esse tipo de aproximação chega a um limite extremo. O compositor cria para seu terceiro movimento um imenso comentário ao scherzo da 2ª Sinfonia de Mahler, disposta inteiramente em grau variável de evidência e fragmentação e, em parte, responsável pela popularidade raramente alcançada por uma obra da vanguarda européia do pós-guerra. Mas a Sinfonia é, também, reflexo de um desenvolvimento consistente da arte musical da Europa contemporânea. Ela é um gigantesco gênero de criação, para o qual os compositores daquele período tiveram de investir uma energia que parecia ter se exaurido nas poucas obras orquestrais de grandes dimensões da geração progressista anterior à Segunda Guerra. O dodecafonismo dos anos 20/30 recolocara o contraponto como a técnica da composição musical por excelência, ainda que sob novas formas. Webern, por exemplo, em uma de suas criações emprega pedagogicamente toda a orquestra sinfônica para a realização de uma das mais transparentes fugas de Bach. Os compositores que sucederam àquela geração eram herdeiros e reféns de uma linguagem complexa a ser ainda descoberta a partir de seus fundamentos.
É no final da década de 50 que começa a se reconfigurar a orquestra sinfônica como veículo da experimentação musical. Berio colabora neste processo com sua obra Epifanie, na qual o som orquestral transita virtuosisticamente desde mínimos sinais esparsos até blocos massivos articulados em graus diversos de dispersão e concentração. Ele considera a hipótese de tratar a orquestra o mais como uma organização histórica de famílias instrumentais, mas sim como um conjunto de famílias acústicas, cujo grau de separação e fusão pode ser repensado a todo instante.” Quanto a isso, Epifanie apresenta a palavra poética, intercalada aos diversos objetos sonoros, reavivando ao mesmo tempo a função expressiva da música, mas à revelia de preceitos ou condicionamentos românticos. Sintomaticamente, o musicólogo David Osmond-Smith traduz esta atitude do compositor um pouco à maneira do crítico de outras artes: “a insistência em bombardear a percepção com uma escala de estímulos mais rica do que pode assimilar desafia a estreiteza do foco de atenção com o qual o homem de nossa cultura busca identificar sua autopreservação.” Advêm daí, portanto desde antes da Sinfonia, alguns paralelos com a obra mahleriana. O gigantismo relativamente centrífugo, que mais dispersa imagens do que as faz convergir, a quase dependência da palavra como elemento estruturador de um “sentido” para a obra musical e, no caso do scherzo, a sugestão da alienação do homem de hoje – e de há cem anos – frente à multiplicidade de estímulos exteriores.
Berio experimentou obstinadamente com a palavra. Epifanie está entre as últimas obras em que reproduz textos intactos de forma linear. A partir de então, suas referências literárias tornam-se cada vez mais “lingüísticas” e abstratas (ou concretas, como definiram alguns poetas paulistas este tipo de trabalho). Por exemplo, ele dá autonomia aos sons resultantes de decomposição fonética e associa-os a efeitos instrumentais equivalentes; da mesma forma, ele deixa transparecer apenas estímulos determinados para a compreensão da significação. No primeiro movimento da Sinfonia ele emprega trechos de O Cru e o cozido de Claude Lévi-Strauss, que observara a linguagem para a estruturação de suas teorias antropológicas. Berio recolhe fragmentos de uma parte do texto em que o antropólogo – visto aqui também como escritor – compara os mitos relativos ao surgimento da água nas culturas indígenas do Brasil. As oito vozes amplificadas articulam quatro palavras, fragmentadas sobretudo nos sons vocálicos: “eau, feu, sang, vie” (água, fogo, sangue e vida) e se comportam muito à maneira daquelas famílias acústicas instrumentais. Paralelamente, a leitura por uma voz de fragmentos narrativos propõe combinações mutantes de vocábulos para as demais vozes, que tendem a universalizar o sentido do texto ou, pelo menos, ligá-lo à significação do projeto da Sinfonia.
Talvez os heróis anunciados nesta parte conectem-se imediatamente aos heróis mortos aludidos nas duas partes seguintes: Martin Luther King (pastor norte-americano, contestador da ordem social em seu país e assassinado em 1967) e aquele herói angustiado do programa mahleriano, que lá, no entanto, terá a vez da ressurreição. O segundo movimento baseia-se novamente em fragmentação fonética, mas então do nome do líder anti-racista, associado a repetições expandidas das harmonias instrumentais. É a parte mais transparente, baseada em obra de câmara de 1987 (O King!).
Esta aproximação a um fato marcante da história permanece no terceiro movimento. O texto principal é composto de extratos da obra The unnameable de Samuel Beckett, mas acrescida de trechos da obra de Joyce, de expressões de estudantes de Harvard, pichações nos muros da Sorbonne de maio de 1968, diálogos familiares, solfejos etc. Logo após a estréia da obra, Berio definiu este movimento como a música provavelmente mais experimental que realizara até então; “mais uma homenagem – desta vez a Mahler e a um de seus mais brilhantes intérpretes, Leonard Bernstein; um tipo de Viagem à Cithera a bordo do scherzo de Mahler, à qual se integram referências diversas – não à toa, mas – por sua relação própria com Mahler.”
De fato, neste movimento estão concentradas citações e referências a cerca de duas dezenas de composições que vão de Bach à música dele próprio e de seus contemporâneos. Seu comentário prossegue da seguinte forma: “Esta seção da Sinfonia representa menos uma composição do que uma reunião de eventos para tornar possível transformações mútuas;... não para destruir Mahler (que é indestrutível), nem para manifestar um recalque pós-romântico (que não possuo)... A justaposição de elementos contrastantes é..., se quisermos, um documentário sobre um objet trouvé gravado na mente do ouvinte. Como um ponto estrutural de referência, Mahler está para a totalidade da música assim como Beckett está para o texto. A relação entre palavra e música poderia ser descrita como um tipo de interpretação, quase de um sonho..., daquele “fluxo de consciência”..., que representa o caráter expressivo mais imediato do movimento de Mahler. Ao pensar na presença do scherzo de Mahler na Sinfonia, a imagem mais espontânea que me vem à mente é a de um rio percorrendo uma paisagem em constante transformação, às vezes sucumbindo para re-emergir em outro lugar completamente diferente e se revelando em formas, ora perfeitamente reconhecíveis, ora em pequenos detalhes perdidos na rede cincunjacente de outras presenças musicais.”
É interessante colher alguns momentos aproximados do primeiro trecho do movimento para observar o trabalho do compositor que lida agora com significados explícitos da linguagem. Talvez se perceba que algo ficou ausente em sua própria apreciação, isto é, a presença de um “eu” complementar aos heróis de Mahler e Beckett, com o qual ele se mostra identificado. Em coro, os cantores anunciam no início um recurso teatral – “Oh! peripécia” –, que atua como uma antecipação às operações efetuadas ao longo do movimento: “peripécia” significa a mudança no caráter de personagens ou situações no decorrer de uma narrativa. E após uma introdução marcada pelos ruídos da linguagem, expressões musicais esparsas e, sobretudo, uma longa citação de Música de Câmara de Hindemith cria-se um primeiro jogo de frases superpostas, recitadas em diversos modos teatrais:
“...não passas de um exercício acadêmico; ...o silêncio aqui parece interrompido; não temos tempo para a música de câmara, precisamos fazer alguma coisa...” O Concerto para Violino de Brahms ressoa no primeiro momento em que o scherzo submerge rapidamente. Com razoável clareza, pode-se escutar duas frases superpostas:
“... após um lapso de imaculado silêncio, parecia haver um concerto para violino em três por quatro sendo tocado no quarto ao lado; com uma montanha no horizonte não exatamente ínfima, um homem se surpreenderia em saber onde termina seu reino...”
Finalmente, surge uma melodia de Daphne e Chloé de Ravel, seguido por passagens cromáticas combinadas a partes semelhantes do scherzo e já tendo apresentado também uma discreta menção a La Mer de Debussy. O conjunto de vozes torna-se menos denso e a declamação pela primeira vez é evidente: “...admirando Daphne e Chloé escrito em vermelho, contando os segundos em que nada acontecera, a não ser a obsessão com... o cromatismo..., o cromatismo! Estou levitando; as muralhas... tudo cede e concede, flui e reflui como o movimento das ondas. Sim, eu sinto que chegou para nós – que chegou para mim – o momento de olhar para trás, se pudermos, e definir nossos caminhos para continuar... Não devia me esquecer disto e não me esqueci... Deveria ter dito isso antes, mas digo agora. Eles pensam que eu vivo, não em um útero, mas em... Bem, estamos diante do público; é uma execução pública fantástica, e a cortina desce pela nona vez. Não te deras conta de estar esperando... uma espera solitária. Este é o espetáculo. Continue!”
Na primeira versão da Sinfonia, o quarto movimento exercia a função de uma coda, na qual o compositor realiza mais uma decomposição fonética de texto: ele verte para o francês as primeiras palavras do poema popular empregado por Mahler no quarto movimento de sua Sinfonia. Rosinha rubra (Röschen rot) torna-se aqui rosa de sangue (rose de sang) para “refluir” ao vocábulo que emprestara de Lévi-Strauss na construção do primeiro movimento. No entanto, o compositor sentiu a necessidade de uma nova conclusão à obra poucos meses depois de sua estréia. Ele chega praticamente a superar o experimentalismo do terceiro movimento empregando uma imensa coleção de fragmentos de música e texto extraídos de todas as partes precedentes com a mesma função daquele rio mahleriano, mas então de curso ainda mais imprevisível e, sem dúvida, muito menos reconhecível dada a natureza da linguagem experimental subjacente. O segundo movimento está na base da parte final. Nas palavras do compositor, aquele movimento, somado às formas fragmentárias das demais partes, representa para toda obra o mesmo que o scherzo de Mahler representa para o terceiro movimento.

Texto de MARCOS BRANDA LACERDA - musicólogo e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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