segunda-feira, 11 de junho de 2007

GRIEG, Edvard - Peer Gynt

Peer Gynt - O Imperador de Si Mesmo é o título da obra teatral de Henrik Ibsen, escrita em 1867, que toma como inspiração a recolha de histórias tradicionais realizada pelos folcloristas e lingüístas Asbjorsen e Moe. No entanto, o texto do dramaturgo afasta-se do apelo e apego popular ao jovem ingênuo, sortudo e preguiçoso, dessacralizando, como afirmam alguns críticos mais acirrados de Ibsen, o herói nacional da Noruega com o toques de particular ironia, exagerando-lhe os defeitos de caráter. Peer Gynt tornou-se mais preguiçoso (e presunçoso), irresponsável, depravado, ardiloso, mercenário: um anti-herói, o avesso de todo homem ideal. Ibsen desterra Gynt, faz o lendário percorrer o mundo, através do mares, indo e vindo entre África e América, envolvido no tráfico de escravos; também opera viagens no tempo, indo alcançando o Egito antigo.
A montagem desagradou a todos e seu único ponto alto, segundo a opinião da crítica e do público, era a música incidental composta por Grieg. Contam as más línguas que até mesmo o músico havia desaconselhado Ibsen de levar a encenação adiante e que, ao fim de alguns entreveros, Grieg teria vaticinado o fracasso da peça, ao sentenciar que o texto seria esquecido enquanto sua música sobreviveria a qualquer vexame de exposição. De fato, muitas casas de espetáculo recusaram-se a encenar 'Peer Gynt' e, quase trinta anos depois, a música de cena ganhou o estatuto de obra independente, reorganizada em duas suítes orquestrais.

Peer Gynt - Suite I Op. 46

  1. O Amanhecer
  2. A Morte de Åse
  3. A Dança de Anitra
  4. No Antro do Rei da Montanha

Peer Gynt - Suíte II Op. 55

  1. A Abdução (Lamento de Ingrid)
  2. Dança Árabe
  3. A Tempestade
  4. A Canção de Solveig

Ouvimos 'Peer Gynt', a música de Grieg, como uma sucessão de quadros dispostos não linearmente, se comparada com a narrativa teatral: o resultado não poderia ser melhor, para as intenções do compositor, pois a música tem suavizada seus traços funcionais e programáticos. Mesmo assim, é possível estabelecer algumas correspondências:
O Amanhecer faz retrato diário das manhãs frias cortadas pelos primeiros e brilhantes raios de sol. Trata-se de um prelúdio para o Ato IV, mas podemos imaginar que, nessa paisagem, Peer Gynt e sua mãe, a velha Åse, atravessam uma floresta de pinheiros. É nesse ponto que começa a narrativa de Ibsen: ela carrega um feixe de lenha às costas, ele não ergue uma palha sequer: exibe-se os dotes físicos: alto e forte, saltando pedras, troncos, pendurado-se nos galhos... vai contando a aventura da noite anterior: saltara por sobre os fiordes na montaria de um grande alce, suas calças e camisa enroscaram-se em seus chifres galhados. É quando Åse, então, descobre que teria mais roupa para remendar: xinga, discute, pede-lhe juízo, mas lembra-se que Peer é apenas 'o seu menino mentiroso'... A música nada conta sobre uma concorrida festa de casamento, onde aparece Peer Gynt, obviamente, sem ser convidado: ali, todos o esnobam, fingindo não vê-lo nem ouvir suas gabarolices de sempre. Mas, por falta de problemas, cria-se: o inexperiente noivo pede-lhe auxílio: a futura esposa está escondida no alto de um celeiro e, terminantemente, se recusa a descer para celebrar as bodas... Este é o motivo de A Abdução, isto é, o rapto:
Peer Gynt foge com Ingrid para as montanhas -- mas, pouco tempo depois, ele a abandona. Por este motivo, o rapaz é banido do vilarejo. Constrói uma cabana e lá vive. Vez ou outra, recebe uma cesta de pãos e frutas enviada por Solveig, uma outra jovem que ele conheceu no dia do casamento malfadado. Foragido, nosso herói encontra-se com a mitológica Mulher-Vestida-de-Verde que lhe deseja como esposo e o carrega para viver sob a terra. Ato II Cena 5: No Antro do Rei da Montanha, acontece o encontro fantástico com os malvados e malditos Trolls (mas, entre eles, Peer Gynt sente-se muito bem a vontade). No mundo inferior, permanece até se dar conta que logo seria transformado em um remendão de gente -- o que, de fato, não se combina com toda sua vaidade. Decide abandonar a Noruega que se tornou um lugar impossível de se viver...
Rapidamente, visita a velha casa de sua mãe. Esta será a última chance de reencontrá-la: A Morte de Åse fecha o Ato III... Livre e perdido no mundo, Peer Gynt arremessa-se à ventura no mar, mercadejando em muitos portos, conquistando terras e riquezas, sofrendo saques e perdas, buscando sua dignidade como homem.
De suas andanças, a partitura de Grieg nos dá a Dança Árabe, Ato IV, que acontece no Marrocos: Peer Gynt é confundindo com um emir e é tratado com todas as regalias: muitas escravas se apresentam a ele e, em A Dança de Anitra, Ato IV Cena 6, temos o retrato sonoro da escolhida para frequentar sua tenda, naquela noite... Armadilhas do destino, um percurso de atribulações, viagens no tempo, até que, finalmente decide voltar para sua terra natal. Afinal, tendo acumulado bens, haveria de ser respeitado e (quem sabe?) não precisaria mais responder ao inquérito sobre o incidente de tantos anos atrás. No navio, o Diabo lhe tenta a confiança e, após renegar o Tinhoso, A Tempetade o faz naufragar.

O inverno pode fugir,a primavera bem amada também pode passar. As folhas do outono e as frutas do verão, tudo pode passar. Mas você há de voltar, Oh meu doce amado, Não mais para me deixar. Eu entreguei meu coração à espera resignada, nada o fará mudar. Que Deus tenha perdão em sua grande bondade para protegê-lo pelas terras distantesem que o exilou, tão longe do meu coração. Aqui espero, querido e doce amado, até meu último dia. Guardo meu coração, cheio de fidelidade, nada o fará mudar.


Em solo firme, o sobrevivente Peer busca o caminho de casa, a sua cabana. Mas novo tormento lhe chega, como o anjo da morte, o Concheiro de Almas que o deseja transformar em algo mais útil: um botão. Peer Gynt tem sucesso no logro que aplica, ora provando que não é suficientemente mal para descer aos Infernos, ora insuficientemente bom para subir aos Céus... Ainda não é sua Hora! Na noite escura, o herói reencontra o caminho de casa. A janela tremeluz, o fogo está aceso... Quem lá espera é Solveig, a jovem que "suspira olhando as montanhas". Anos a fio, aguardou, acreditando unicamente em seu coração, nos sonhos que habitaram aquela cabana. Esta é A Canção de Solveig.

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