quarta-feira, 20 de junho de 2007

MOZART, W. A. - Requiem em Ré Menor - K 626

No ano de 1791, após regressar de Praga, Mozart começou a trabalhar imediatamente no Requiem, tarefa de que se ocupou com excepcional esforço e interesse. Continuava, porém, muito doente e oprimido. Sua esposa compreendia isso e sofria com a situação, esforçando-se, contudo, para aliviar a deterioração da saúde do marido. Um dia levou-o a passear até o Prater, para distraí-lo, e, enquanto os dois estavam a sós, Mozart começou a falar sobre a morte, insistindo que estava escrevendo o Requiem para si mesmo. Nesse momento vieram-lhe lágrimas aos olhos e, quando Constanze tentou afastá-lo desses pensamentos lúgubres, ele respondeu: “Não, não, sinto isto com muita força; não durarei muito, certamente fui envenenado! Não consigo libertar-me destes pensamentos.” Esta conversa impressionou demais o coração da esposa, que mal conseguiu consolá-lo e demonstrar que a melancólica imaginação do marido não tinha fundamento. Ela estava convencida de que a doença do marido se agravava e que a composição do Requiem era por demais exaustiva para ele. Consultou o médico e conseguiu que ele parasse de compor por algum tempo. Realmente, ele melhorou um pouco e até conseguiu terminar uma pequena cantata (Eine Kleine Freymaurer Kantata, K. 623), cuja estréia foi um sucesso. Animado, pediu a Constanze a partitura do Requiem para continuar o trabalho. Essa melhora durou pouco. Vieram novamente os desmaios e ele mergulhou na antiga depressão, até ser obrigado a recolher-se ao leito, condição da qual, infelizmente, nunca mais se recuperou. Mozart manteve-se consciente durante a doença, até o final. Morreu serenamente, mas com relutância. No dia de sua morte, pediu para ver a partitura do Requiem: “Eu não disse que estava escrevendo este Requiem para mim mesmo?”, disse. Pouco tempo antes de morrer, Mozart reuniu seus alunos Süssmayr e Eybler e sua esposa Constanze; os quatro cantaram algumas partes do Requiem. Em alguns momentos, se sentia tão oprimido que começava a chorar. Quando estavam juntos, ele teria dito que gostava muito do Recordare. Nesse momento, deu instruções a Süssmayr para orquestrar e completar a orquestração das partes que faltavam, mostrando que a fuga inicial do Kyrie deveria ser repetida e as partes incompletas, que já estavam esboçadas, ele recomendou a seu aluno como deveriam ser preenchidas. Foi certamente por este motivo que Süssmayr escreveu mais tarde para Breitkopf, de Leipzig, dizendo que havia escrito a parte principal deste Requiem, mas, como observou Constanze, qualquer um poderia terminar o trabalho, baseado nas direções e indicações precisas de Mozart. Até mesmo porque nada que Süssmayr produziu, antes ou depois, se compara a obra de Mozart. Portanto, para nós, as pesquisas recentes mostram que o Requiem foi composto integralmente por Mozart, limitando-se seu aluno a transpor para o papel aqueles esboços que o mestre deixara com as instruções a serem seguidas. Outro comentário O mais antigo texto de Requiem, ou missa de mortos, de que se tem notícia, data do século IV: "Introitus - Requiem aeternam", com citação do IV Livro de Esdras, livro não canônico. Fontes existentes do século IX demonstram como o gênero começa, a partir de então, a ganhar autonomia formal. O Requiem tem seu início no ano de 998, quando foi estruturado não só para ser oficiado em todos os dias 2 de novembro, mas também em outras ocasiões, como velórios oficiais, por exemplo. O fim de seu uso dá-se com o Concílio Vaticano II (1962-65), inicialmente com a supressão do Dies irae e, mais tarde, em 1969, com a decretação do fim do ofício, por conseguinte, da produção musical do gênero dentro da Igreja. A sua forma nada mais é do que uma forma particular ou variada da Missa Ordinária, da qual utiliza o Kyrie, o Sanctus, o Benedictus e o Agnus Dei. O Gloria é naturalmente excluído, não apenas por seu caráter alegre e jubiloso, mas também por simplesmente não existir à época como peça cantada. No serviço religioso, o Requiem nasceu como um gesto de amor ao membro da comunidade, na ocasião de sua morte. Era realizado na igreja, após a chegada da procissão que trazia o corpo da casa do falecido, em meio ao cântico de salmos. Ao fim do Requiem era entoado o cântico “In paradisum” com palavras de acompanhamento, ao ser o corpo retirado e transportado da igreja para o cemitério "Dum corpus effertur ex ecclesia"). Considerando a morte como "aniversário" da vida eterna, a fé cristã na ressurreição e no corpo como "Templo do Espírito Santo" e semente para uma nova forma, o cnto de salmos e hinos em ocasiões de morte passaram a se constituir "cristiana traditio" a partir de São Jerônimo (séc.IV), diferenciando-se e opondo-se à noção helenística da imortalidade da alma, assim como da prática judaica da lamentação pelos mortos. Já a prática da encomenda de missas para o defunto no 3º, 7º, 9º e 30º ou 40º dia de morte explica a encomenda de Requiem a compositores, como nos casos de Schütz (Musikalischen Exequiem) e Mozart (Requiem).
Traduções e comentários sobre as partes do Requiem de Mozart
1 – Introitus - coro: Dai-lhes, Senhor, o repouso eterno, e a luz perpétua os ilumine - soprano-solo: A Vós, ó Deus, devemos dirigir nosso louvor, em Sião - coro: Ouvi minha oração! A Vós virão todos os mortais. É o mais antigo texto do conjunto do Requiem. Dele já se tem notícia desde o século I, retirado do citado Livro IV de Esdras, não canônico. É curioso notar que descanso eterno não é, em nenhum lugar da Bíblia, sinônimo de vida eterna. Para o surgimento de tal conceito existem três possibilidades, sendo a primeira a do descanso na Terra Prometida (Canaã), após 40 anos de êxodo, quando a vida judaica nômade-extrativista se transforma em sedentária agropecuária; a segunda, opondo descanso às atribulações da vida, descrito no Livro de Jó, 14,1: "O homem, nascido de mulher, tem a vida curta e cheia de tormentos". A terceira e mais provável encontra-se na noção do descanso sabático, após a realização de obras. É a que, bíblica e teologicamente, mais se aproxima do sentido original da noção de Requiem aeternam, ou seja, repouso eterno. Como Deus repousou, assim também o homem. Sendo o Cristianismo centrado na ressurreição dos mortos, o repouso se daria entre o período de morte e do Juízo Final, previsto pelo Apocalipse. (Textos que reforçam tal sentido: Hebreus 4,9; Apocalipse14, 13; Jeremias 6, 16; Isaías 57, 1-2 ; Mateus 11, 29)
2 – Kyrie - coro: Senhor, tem piedade de nós; Cristo, tem piedade de nós! Ato penitencial. Oração no sentido de uma súplica e não a de uma invocação após uma confissão de pecados ou da própria condição de pecador.
3 – Sequentia (Dies irae, Tuba mirum, Rex tremendae, Recordare, Confutatis, Lacrimosa) A sequência "dies irae" é a parte mais dominante e abrangente da composição do Requiem. O seu foco central está no fim das coisas e no Juízo Final, para o povo de Deus e demais povos e nações.
a) Dies irae - coro: Dia da ira, aquele dia, tudo será cinza, diz Davi, diz a Sybilla. Quanto tremor há de haver quando o Juiz vier pedir contas de nossas obras. Este Dia do Senhor já nos é testemunhado pelo profeta Amós (5,18-20). Porém, na Seqüência, a testemunha deste Dia não é Amós, mas Davi, muito provavelmente em sua visão da ira de Deus descrita no Segundo Livro de Samuel (22, 5-16). Junto a esta visão surge ainda a figura de Sibylla, que nos remete a apócrifos dos séculos II a VI de nossa era, reunidos numa coleção judaico-cristã de oráculos, sentenças e provérbios conhecida como Oracula Sibyllina, que imitam o gênero greco-romano de oráculos sobre o além.
b) Tuba mirum - baixo: A terrível trombeta soará onde haja mortos para chamá-los ante o trono. - tenor: Morte e Natureza se horrorizarão, quando ressuscitarem os mortos para a prestação de contas - contralto: Quando o Juiz se sentar, tudo o que está oculto aparecerá, nada ficará impune - soprano: Ai de mim, que direi, que protetor invocarei, se o próprio justo não se sente seguro? Esta "terrível trombeta" não é uma das sete trombetas do livro do Apocalipse (8,2), mas, como o Introitus, foi retirada do Livro IV de Esdras, onde se lê no capítulo 6, 23: "A trombeta soará com vigor. Todos a ouvirão e se horrorizarão." Também no Novo Testamento encontramos alusões sobre esta trombeta no fim dos tempos, como em Mateus 24, 31 e 1 Cor 15, 52.
c) Rex tremendae - coro: Rei de temível majestade, que salvais só por Graça, salvai-me, fonte de piedade! Aqui o texto passa para a primeira pessoa, assim seguindo até o fim. Aparece o contraponto entre a dimensão da salvação através da graça e a salvação puramente "técnica" no Juízo Final, realizada segundo as obras. A Jesus Cristo, então como juiz investido e autorizado por Deus para agir e julgar segundo seus critérios e vontade, implora-se a piedade.
d) Recordare - quarteto solista: Recordai, ó bom Jesus, fui causa de Vossa cruz. / Não me percais nesse dia. / Buscando-me, sentastes fatigado, pela cruz me resgatastes, não seja vão o Vosso trabalho. Juiz do justo castigo, concedei-me o perdão antes do Dia do Juízo./ Gemo, por sentir-me culpado, minhas faltas ruborizam minha face; suplicante, Deus, peço-Vos perdão! / Vós que perdoastes Maria Madalena e ouvistes o ladrão em sua prece, dai-me também esperança./ Minhas preces não são dignas, mas Vós, que sois misericordioso, fazei que eu não queime no fogo eterno. / Colocai-me entre as vossas ovelhas, separai-me do inimigo, colocando-me à Vossa direita. Uma alusão à teoria da predestinação difundida a partir do século V por Santo Agostinho, um dos "Pais da Igreja". Segundo a mesma, já estaria escrito os que iriam se salvar e os que já estariam condenados. Citando Madalena e o "bom" ladrão, que foram perdoados, o fiel pede a Jesus que não se esqueça da razão de sua Cruz e tenha misericórdia dele.
e) Confutatis - coro masculino: Atirados os malditos às terríveis chamas, - coro feminino: acolhei-me entre os benditos. - coro misto: Oro suplicante e prosternado, com o coração contrito como a cinza. Tomai conta do meu fim. Aqui, uma expressão típica dos frutos da repressão religiosa, exercida em forma de ameaça às almas: o protagonista pensa só em si e pede para estar entre os escolhidos. Posições como esta, no passado na igreja romana, mais tarde no protestantismo puritano e hoje em dia em meio à denominações fundamentalistas, causaram e causam enormes estragos à fé cristã. Afinal, a Graça de Deus e a essência do Cristianismo não se reduzem à postura dos que querem apenas o melhor para si próprios.
f) Lacrimosa - coro: - Dia de lágrimas, aquele dia, em que o homem ressurgirá das cinzas para ser julgado. Poupai-os então, ó Deus, piedoso Senhor Jesus! Dai-lhes o descanso eterno! Última citação ao "Dia do Senhor", encerra o texto da Seqüência, com o discurso na primeira pessoa agora de forma um pouco mais generosa, com o fiel pedindo a misericórdia de Deus para os outros.
4 – Offertorium (Domine Jesu, Hostias)
a) Domine Jesu - coro: Senhor Jesus Cristo, Rei da Glória, livrai as almas dos fiéis defuntos, das penas do inferno e do lago profundo. Livrai-as das garras do leão. Que o abismo (tartarus) não as trague e que não caiam nas profundezas tenebrosas; - solistas: que São Miguel, com seu estandarte, as conduza para a luz santa, - coro: que outrora prometestes a Abraão e à sua posteridade. Requiem é uma Missa, uma liturgia eucarística, na qual é traçado um paralelo entre a morte de um cristão e a paixão e morte de Cristo. Em Jesus morre-se e ressuscita-se. Se Jesus é juiz, é também salvador. Offertorium é a oração que pede o livramento de todos os fiéis que morreram na fé e na esperança. O substantivo "tartarus", da mitologia grega, significa as profundezas da terra, onde Zeus aprisionava os Titãs, seus inimigos. Miguel foi o arcanjo que derrotou Lúcifer.
b) Hostias - coro: sacrifícios e orações vos oferecemos, Senhor; recebei-os pelas almas que hoje rememoramos: fazei-as passar da morte para a vida Na liturgia romana a cerimônia eucarística é a representação do sacrifício de sangue de Jesus como único e definitivo para a remissão dos pecados, em oposição à prática judaica de sacrifícios de animais como forma de purificação. A apresentação de ofertas e sacrifícios (não de sangue) da comunidade à Deus, através do seu pastor, deve ser demonstração de amor, solidariedade e intercessão da Igreja em seu papel advocatício pelos mortos de sua comunidade.
5 – Sanctus e Benedictus - coro: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos, o Céu e a Terra estão cheios da Vossa glória. Hosana nas alturas! - solistas: Bendito o que vem em nome do Senhor - coro: Hosana nas alturas! Biblicamente não existe uma ligação direta entre o Sanctus e o Benedictus, uma vez que o primeiro texto tem origem no AT (Isaías 6,2-3), quando serafins clamavam e diziam uns para os outros ”Santo, Santo, Santo é Iahweh dos Exércitos, a sua glória enche toda a terra”, e o segundo no NT (João 12,12), quando a multidão, sabendo que Jesus viera para Jerusalém, tomou ramos de palmeira e correu ao seu encontro para saudá-lo, clamando: “Bendito o que vem em nome do Senhor. Hosana nas alturas!”. É o momento em que Jesus entra na cidade montado num jumentinho para a Páscoa judaica, quando seria imolado em sacrifício, cumprindo a profecia de Zacarias (9,9): “Exulta filha de Sião! grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que teu rei vem a ti, montado sobre um jumentinho”. A tradição cristã, colocando ambas as passagens entre o Ofertório e a Comunhão, saúda e aclama a chegada do Senhor, entendendo a fórmula ternária Santo, Santo, Santo como a invocação da Santíssima Trindade.
6 – Agnus Dei (Cordeiro de Deus) Nos primórdios do Cristianismo o Agnus Dei era entoado até a primeira "quebra" ou reparte do pão eucarístico. Após a divisão do pão eram então recitados os três pedidos: - Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós; - Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós; - Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz. Ao longo de todo o rito entoava-se em litania o miserere nobis. Ao fim, repetia-se o terceiro verso com o final dona nobis pacem, quando então os fiéis trocavam um "beijo da paz". A partir dos séculos X e XI, neste momento da Missa de Mortos, dizia-se não o dona nobis pacem, mas o dona eis requiem (dai-lhes o descanso).
7 – Communio “Lux aeterna” - soprano-solo: - Que a luz eterna os ilumine, Senhor, com vossos santos por todos os séculos, porque sois misericordioso - coro: (repete o texto da solista e conclui:) Descanso eterno dai-lhes, Senhor, por todos os séculos, porque sois misericordioso. Parte final da rubrica original do Requiem. Em Mozart, aparece dentro do Agnus Dei. Retornam as palavras iniciais Requiem aeternam (no Responsorium) e do Lux aeterna (Communio). Aqui Süßmayr foi instruído por Mozart para reexpor o tema inicial. O texto termina com as palavras "quia pius es" (porque és misericordioso), afirmando a condição de um Deus fiel e amoroso com os seus.

3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei Emanuel! Muito obrigado por todas as explicações. Excelentes comentários!
Daniel Serfaty

Luppy disse...

Nossa, muito bom!

Obrigada pelas explicações!

Estou utilizando algumas coisas (fazendo a devida referência na minha monografia!)

Abraço!

Denilson Pinto disse...

Parabéns, escutei neste momento esta sinfonia e fiquei muito contente de saber estes detalhes. Parabéns.
Denilson Pinto, Campo Grande, MS